Madame Satã vem descendo a ladeira
Por Athos Guizzardi
Quem é esse macho-fêmea que vem descendo a ladeira, abrindo caminho a golpe de navalha e levantando poeira?
Quem é essa mulher que à noite dança no tablado, coberto de dourado, feito morcego nordestina?
Quem é essa malandro que não tem medo de dizer “sou bicha! Sou, fui e sempre serei”?
Quem é esse-essa, essa-esse, ele-ela, ela-ele?
João Francisco dos Santos, discípula e herdeiro de Sete Coroas, nunca abandonou sua navalha e o sangue quente, fez-se rei-rainha de si mesmo. Abrigou, sob o teto que conquistou, cada filho e filha que acolheu como seus. E, ao morrer, o malandra continuou seu reinado. Na quimbanda - mais viva que os ramos da figueira do inferno, mais dançante que chama ardente e mais crescente que a lua em formato de foice - recebeu de Belzebu um trono seu.
Outro dia ouvi falar nessa história: que Madame Satã vem baixando nas cabulas e inzos de nossa tradição. Se já era imortal o transformista, imortalizou-se de vez agora, transformando-se uma vez mais para continuar a ser o que sempre foi. Se é exu ou pombagira, nenhum dos dois - ou tanto faz. Talvez já estivesse entre nós antes, com este nome ou aquele, com esta capa ou aquela. Não há - que eu saiba - quem possa dizer. Mas, nestes tempos em que as consciências resgatam a multiplicidade de possíveis formas de existência, abrimos na mente e no peito a brecha necessária para vazar o fogo desse senhor-senhora e fizemos ressoar na casa dos mortos o convite para recebê-lo.
Há um esqueleto sob as histórias que moldam o Ocidente desde o trovadorismo e além. O drama da maturidade sexual perturba a consciência judaico cristã. O que está em jogo quando o cavaleiro recebe do pai seu cavalo e espada, conquista a virgem que espera-o no topo de uma torre qualquer e a traz para junto de si?
O amadurecimento do herói ocidental é seu mergulho com a heterossexualidade triunfante, masculinista e patriarcal. Herdar a espada é herdar o falo, herdar o cavalo é herdar o vigor, munir-se deles é armar-se de uma masculinidade bastante específica e levá-la até o fim do mundo derrotando tudo o que ameaça-a na busca da fêmea que servirá para reprodução deste mesmo mito. Mas o Brasil perverte tudo!
João Francisco dos Santos não recebeu do pai qualquer cavalo. Antes, sua mãe trocou-o por um e recebeu do comprador de seu filho a promessa de que ele seria bem cuidado, educado e alimentado. Não recebeu espadas, apenas a lâmina curva de uma navalha. Encontrou não virgens vestais em torres de pináculo alto, mas trabalhadoras noturnas em cortiços e sobrados. Os desafios do mundo em seu caminho não foram dragões, bárbaros ou ogros, mas fazendeiros, capitães, sargentos e coronéis. Os feiticeiros em seu caminho não amaldiçoaram sua jornada, mas cruzaram as guias que protegiam-no na Lapa. O seu mentor não foi um sábio, foi um ladrão. João Francisco dos Santos foi herói nos becos e rei nos cabarés, Madame Satã foi heroína nas vielas e rainha nos palcos. De tudo desviou-se, sendo ele mesmo a maior das desviados. Sendo real, sendo quem era, pervertendo os idealismos.
Carlo Ginzburg descreveu o sabá das feiticeiras da Península Itálica como um espelho revelador de todos os temores e valores negativos de um povo e época. No Brasil, cresce no ar a Quimbanda - bruxaria tradicional de nossa terra - tal qual o perfume de Maria Padilha insuflando os sentidos da carne e do espírito em transe palpitante. Como fogo, nosso culto alastra-se em reação candente de toda chama quando adensam-se as sombras, reunindo e trazendo para si tudo quanto o mundo mastiga e depois cospe. E permanece o inferno a ser o que sempre foi: o último refúgio e morada perfeita para os marginais e renegados, pois tudo o que é desprezível nesta consciência dual é abraçado pelo Inimigo. O inimigo que é sempre o Outro. O outro que sou Eu. Eu que sou Feiticeiro. Feitiçaria que tudo devora.
Cá, terra de santa cruz, extremo oeste do inferno atlântico, ninho do diabo, purgatório da beleza e do caos, o sabá chamou-se gira e a feitiçaria casou-se com Congo parindo Quimbanda - sedutora e assassina, curandeira e tentadora, expansiva e devoradora. Do jeitinho que Madame Satã gosta.
Vem, malandro-mulher, que é homem-pombagira e dança sobre caco de vidro no terreiro de Lucifér.
Vem, moça-rapaz, que é enviado de Belzebu e não presta contas ao que o mundo chamou disso ou daquilo.
Vem, Satanás, troca de pele no batuque como trocaste de roupa e sexo no palco tantas vezes, como troca de couro a serpente erótica na encruzilhada.
Vem, Madame Satã, chega na minha gira, bebe e fuma comigo, mostrando o que devo aprender e o que devo curar, do que devo sorrir e o que devo matar para ser eu e não mais que eu - seja este quantos for.
Vem, pode chegar! A morada de exu é o caminho que não conhece limites e onde todos podemos caminhar.