Iniciação na Quimbanda de Angola, necromancia e pertencimento.
“Cada iniciação me mostra alguma verdade sobre mim mesma que eu resistia muito em perceber ou admitir. Percebo que meu tempo não é mais meu tempo, mas outro. O ritmo muda, a vida pega uma tração da qual não estou acostumada - e não é pra estar. Aqui, comodismo não se cria.
O fogo movimenta, altera e transmuta quem eu pensava que fosse. Se quero o descanso e o sono, há o alerta. Se me agito de forma desnecessária, tudo faz com que se apazigue. Por trás do véu, o mistério se apresenta. Por trás do mistério, toda uma vida a ser bem vivida, aprendendo com meus irmãos a andar elegantemente sobre a terra.
Por último mas não menos importante: me permitir ser cuidada e acompanhada por pessoas que confio e ter a certeza de que estou sendo conduzida por quem de fato se importa comigo, faz sim toda a diferença.”
Dora Steimer
O "batismo de fogo", termo afetuoso com que nomeamos esse ritual disruptivo, denso e essencial na jornada de todos os Quimbandeiros da Tradição Angola de nossa comunidade, conduz-nos à Quimbanda com a segurança de que nossas asas não serão quebradas ao alçar voo. É inerente em nossa família reconhecer a presença vital de nossos ancestrais (bakulos). Devemos estar cientes de que para que uma árvore se erga firme e exuberante, suas raízes devem ser nutridas, seu tronco robustecido e suas folhas e frutos desabrochados em toda sua beleza.
É natural que muitos se questionem sobre tal questão. A Quimbanda é, indubitavelmente, um culto ancestral, e tanto Exu quanto Pomba Gira compartilham desse legado ancestral conosco. São eles, também, entidades que transitam nas correntes da história, erguendo-se como guias e guardiões ao longo das eras. Em seu movimento contínuo entre o tangível e o espiritual, refletem a essência profunda de nossa linhagem e nos conduzem pelos caminhos enigmáticos do destino e da redenção.
Antes de acolher Exu e Pomba Gira em nossos rituais, é imperativo honrar as raízes de nossos antepassados, os rostos esquecidos que habitam as profundezas de nosso DNA. Através do ritual sagrado conhecido como nzô yombeta advindo das macumbas cariocas no cerne de nossas misturas que compõe a nossa pluralidade, estabelecemos essa conexão vital, possibilitando uma ressignificação profunda em nossa jornada, uma sensação de plenitude e integridade.
Nesse cerimonial, são entoadas rezas, realizados cortes, simbolizando a morte e o renascimento, proporcionando uma ligação genuína com aqueles que já não habitam nossas memórias, mas que continuam a fluir em nossa linhagem ancestral. Ao apaziguar esses antepassados esquecidos, harmonizamos nossas vidas não conforme os desejos do ego, mas sim alinhando nosso destino e quebrando as correntes que nos impedem de crescer e prosperar verdadeiramente.
E é nesse renascimento, nesse profundo processo de reconexão com nossos ancestrais, que nos banhamos aos pés daqueles que vieram antes de nós. Este é o ponto de partida para adentrar ao reino de Exu e Pomba Gira, os guardiões das encruzilhadas espirituais de nossa jornada. É neste caminho que depois somos coroados e elevados à condição de Tata ou Mameto, portadores da sabedoria ancestral, detentores dos mistérios e das bênçãos que fluem das energias que permeiam o céu (nzulu) e a terra (ntoto).
Nessa consagração, assumimos não apenas um papel de liderança espiritual, mas também nos tornamos os guardiões da tradição, os canalizadores das forças cósmicas que permeiam o universo. Com essa coroa sobre nossas cabeças, somos guiados pela verdade, pela compreensão dos ciclos da vida e da morte, e pela sabedoria que flui dos reinos além do visível. Como Tata ou Mameto, estamos prontos para conduzir aqueles que buscam a jornada espiritual em direção à iluminação de si mesmo e ao entendimento mais profundo da existência.
É nesse momento de reconexão com nossas raízes, de honra aos que vieram antes de nós, que sentimos o chamado interior para assumir um papel de serviço mais elevado na comunidade espiritual e futuramente um sacerdócio.
É uma jornada de autodescoberta e comprometimento, onde nos comprometemos não apenas com nossa própria espiritualidade, mas também com o bem-estar e o crescimento daqueles que nos cercam. Assumir o sacerdócio dentro de nossa família é aceitar a responsabilidade de guiar, ensinar e servir como um farol de luz nas sombras do desconhecido.
Mameto N'ganga Emekabande