Os caminhos de Exu Cigano

Por Athos Guizzardi (Tata N'ganga Mukunji)

Foi com ele meu primeiro transe, ainda quando nome, ponto ou trejeito eram mais que ignorados. Um segundo de olhos fechados ao repique do batuque e Tranca Rua, Tata Mulambo e Zé Pelintra aproximaram-se no corpo de seus filhos para ajudar-me a colocar também em terra este camarada desconhecido. Doeu o meio da testa como se ferro quente o penetrasse, curvou-me a espinha como bambu verde em tarde de ventania e cerrei os dentes como se cada nervo de meu corpo apontasse, de repente, para as mandíbulas inquietas. E ele não veio. Deixou comigo todas as certezas abaladas e uma dúvida: era loucura ou vaidade?

Nenhuma delas ou talvez um tanto de cada diluído em uma quantidade mais substancial de uma outra coisa que ainda não inventaram palavra escrita que descreva, mas que o tambor sabe mais que definir - sabe conjurar! Quem tem diabo há de me entender!

E o tempo passou sem que outra vez experimentasse algo similar. À época, um iniciante na Umbanda, conheci através da médium de uma das minhas madrinhas - vó Francisca de Aruanda - a família que possibilitou um mergulho mais profundo neste caminho. Entre tardes quentes com cerveja gelada e noites amenas de conversa no terraço, comecei a ouvir - e perguntar! - acerca das experiências e da tradição cigana que os mais novos amigos, os Kalon Latatchos tanto tinham a falar.

Eu, que até então pouca curiosidade tinha acerca do culto a espíritos romani dentro da Umbanda, não pensei duas vezes quando ouvi destes grandes professores - Yuri e Morgana - o convite para participar de um grupo de estudo de magia e feitiçaria cigana. Uma vez por mês, estávamos lá - o estúdio em que se ministravam as aulas de dança na semana convertia-se no espaço em que um bando de gajin e gajon se reuniam para anotar avidamente tudo aquilo que eles achavam pertinente nos ensinar. Ervas, rezas, oferendas, tachos, os nomes e ritos deste ou daquele antepassado, as diferenças entre os diferentes clãs e etnias romani pelo mundo… um oceano para quem nada conhecia, uma gota diante de todo conhecimento que estes povos têm a passar.

Em algumas destas ocasiões, tanto nas rodas de aprendizado quanto nas mesas de conversa fiada, passeávamos pelas memórias de macumbas, piadas e planos, até chegarmos à história de como os romani espalharam-se pelo mundo. Diziam-me então que os mais velhos lembram que seus mais velhos contaram que a terra mais distante da qual recordam pela qual transitaram era aquela às margens do Indo. E, no entanto, todos sabem que não são de lá. Na verdade, contaram-me, os primeiros romani eram filhos da mais brilhante estrela que se vê a olho nu quando pousa o céu noturno. Sim, aquela que os egípcios batizaram de Sopdet e trataram de transformar em deusa. Mas, dessas coisas, não se detinham.

Pois diziam também que, depois dos ventos mornos do Indo lhes impulsionar rumo ao oeste, deixaram para trás areias quentes e encontraram mais um rio à beira do qual pudessem habitar. Pena que os soberbos donos dessa terra não sabiam viver sem escravizar e, justo nessa hora - em que o povo oprimido pelos tais soberanos acabavam de libertar-se cruzando o Mar Vermelho - uma nova gente era capturada para substituir os grilhões que foram deixados no desterro. Sim! Faraós - que tanto embriagaram-se na ilusão da eternidade e ergueram templos e pirâmides em nome de superar a morte e domesticar o tempo - justamente eles substituíram o povo proibido de investigar o futuro por aquele que tão maravilhosamente sabe decifrá-lo. Assim me foi dito, assim eu aceito. Não porque seja acrítico, mas porque sei - desde que Walter Benjamin me contou - que o tempo passado é vivido na rememoração e, tudo isso que se crê lá atrás, está repleto de “agoras”. Assim, Yuri dizia, nada que se aproxime demais do que lembra o Egito faz parte do que se encanta hoje em dia - em respeito aos ancestrais escravizados! E eu acatei.

Mas não sem questionar: - E como foi que fugiram do Egito?

E me respondeu que, sendo obrigados a minerar diamantes, safiras, rubis e ouro, os romani meteram-se nos túneis e aprenderam com as pedras preciosas e metais escondidos quais os caminhos ocultos sob o chão. Fugiram, assim, do vale do Nilo e espalharam-se por cada canto. Rom, cinti, kalderash, matchuaia, enfim… já não era possível enumerá-los. Os Kalon, etnia à qual pertenciam meus amigos, ocuparam a Península Ibérica e chegaram em peso ao Brasil como parte da corte de João VI quando este passou a perna em Napoleão.

Neste ponto da história, o copo de cerveja, ou secou, ou estava quente. E, na missão de abrirmos mais uma garrafa, o assunto mudava, mas a conversa prosseguia.

Em um domingo de Junho, fomos todos ao Parque dos Orixás - na serra fluminense, tanto eu quanto todos os demais integrantes de nosso grupo de estudos. Fora alugada uma clareira do Parque para nosso rito, justamente aquela à sombra de uma gameleira branca dedicada a São Sebastião. Enquanto uns juntavam lenha para a fogueira a ser acesa mais tarde, outros foram à beira do rio próximo buscar pedras com as quais cercar o espaço do fogareiro e eu fui encarregado de montar uma tenda. O propósito de tudo aquilo era comungar com os espíritos ciganos e trocar de pele - um rito de morte e renascimento!

Morgana aproximou-se de mim e rezou na língua de seu povo para que eu fosse iniciado ao espírito do fogo. Deu-me uma faca com a qual cavar a terra e pediu que eu imaginasse o magma jorrando do solo conforme eu escavasse. E como são poderosas as metáforas, pensei. Pois não demorou e minha escavação descobriu um formigueiro e a sensação de ardor consumiu meus braços, mas não parei o serviço. Em torno da cova que eu abri, colocamos algumas frutas em oferendas aos ancestrais romani e enchemos o buraco de lenha seca. Acima disso tudo, estendemos as cordas e os panos de uma barraca.

Enfim, começou nosso ritual. Um de cada vez, deitávamos entre as raízes da gameleira e Morgana derramava leite no chão ao nosso redor. Incessantemente, ela rezava na língua romani e pedia que deixássemos na terra tudo aquilo que gostaríamos de matar em nossas vidas. Quando levantávamos, ela pedia que imaginássemos tudo aquilo que já tivemos e que gostaríamos de ter novamente, então rezava mais uma vez em romani, mas mais baixinho e segurando em nossas mãos.

Yuri então nos conduziu à tenda que eu havia preparado. As formigas se dispersaram, mas uma fogueira estava acesa no interior da barraca. Sentávamos ao redor dela - grupos de cinco pessoas por vez - e compartilhamos um cachimbo na quentura abrasadora em que éramos confinados. O Fogo depurou nossos espíritos! Uma tortura necessária e que me fez valorizar como nunca antes a delícia de sorver uma dose de ar puro e fresco quando enfim saí da barraca.

Esperamos em silêncio até que todos experimentassem o mesmo calor e nos sentamos em torno da lenha seca. Em uma árvore próxima, oferecemos pães, frutas e especiarias aos nossos espíritos romani - mesmo que nem todos soubéssemos seus nomes ainda - e consagramos junto às velas os objetos que gostaríamos de imantar com a energia desse povo. Foi quando o sol começou a descer no ocidente, atrás das matas. Acendemos a fogueira e começamos a caminhar em círculos ao redor dela, mais rápido e mais rápido enquanto Morgana atirava enxofre nas labaredas e as explosões amarelas engoliam suas mãos ornadas de pulseiras e anéis. Ela gritava em romani e Yuri derramava vinhos no fogo em oferenda aos espíritos. Então, com o punhado de ervas secas que tínhamos conosco, lançamos nas chamas os nossos pedidos. Lembro-me até hoje do que disse aos espíritos.

Em silêncio, meditei:

“Eu nunca pedi para mergulhar nesse caminho de feitiçaria cigana, nunca foi algo que me chamou muita atenção; mas eu fui convidado e eu gostei do que vi, eu não quero parar por aqui, quero aprender mais o que vocês têm a me ensinar e me coloco à disposição para que vocês me guiem até onde eu devo seguir”.

E, neste instante, atirei minhas ervas secas ao fogo e virei-me para o lado. Um ou outro dos gajin e gajon de nosso grupo entregavam-se ao transe enquanto os Kalon Latatchos conduziam o rito. A médium de minha madrinha inclinava-se ao timbrar do sino de ouro que Yuri sacudia nas mãos e eu comecei a bater palmas para que o espírito de Madalena, a ancestral kalin que ela cultuava, pudesse se aproximar de seu corpo. Foi quando perdi o controle das pernas e os olhos escureceram, mas o tronco permanecia consciente. Comecei a dançar, pular e abaixar de modo que minhas duas pernas esquerdas jamais me permitiram até então. E então, passou.

Pablo e Wladimir, os filhos de nossos tutores nesta jornada pela magia romani, comentaram que eu dançava feito um cossaco russo. E Morgana complementou que conseguiu ver o meu antepassado romani - que eu nunca soube que carregava no sangue. Segundo ela, um homem alto e severo do leste europeu e que - mais tarde, o oráculo de Yuri confirmou ser do clã matchuaia e deu-me seu nome de vivo.

Anos depois, já não trilhava mais a jornada espiritual na Umbanda e nosso grupo de estudos e feitiçaria cigana com os Kalon Latatchos desfez-se. Nenhum fio de sangue pode ser rompido, no entanto. Nenhum pacto bem fundamentado é capaz de ser desfeito. Nenhuma ligação real com um espírito pode ser apagada. Quando pactuei na Quimbanda, o rei do meu tronco apresentou-se como Exu Cigano. Então, ousei indagá-lo e conhecê-lo através do meu próprio oráculo. Era, é e sempre será o mesmo espírito e ancestral junto a mim não importa a tradição em que se manifesta.
Lógico que nunca soube de alguma ancestralidade romani em minha família. O homem é antigo! E não é que o povo diz que o diabo sabe muito porque é velho?

Pois Exu Cigano, meu antepassado e meu diabo, é mais que velho. Nasceu no leste europeu, de fato. Mas morreu na Península Ibérica. Não em Portugal, não em Espanha, mas na terra que tem estes nomes embora tenha me dito que - quando vivo - as duas coisas eram uma só. E eu, metido a entender de tudo como sou, chutei que sua morte fora entre 1580 e 1640 - época em que Felipe II uniu as potências ibéricas sob uma só coroa. Ao meu capeta, no entanto, que sempre fez da estrada o seu reino, pouco importa se era Avis ou Habsburgo no trono do império. Fato é que morreu antes de meus vivos terem memória e nunca chegou a colocar os pés no Brasil, mas conhece esta terra. Conhece-a porque permanece sempre vivo no sangue de seus descendentes, minha rama paterna. E eu - tão comum e tão humano quanto ele sempre foi - torno-me ainda mais vivo por manifestar através da carne o seu fogo na quimbanda.

Se rezo em romani como aprendi, ele responde.

Tiê bragoil atié salé romé! Tali gajem katali lelumia!


Se canto em português, ele aproxima-se:

Dona Cigana embaixo de uma figueira
Ela sambava em cima de uma fogueira
Dona Cigana deu uma gargalhada
E chamou Exu Cigano lá na sua encruzilhada

Se o saúdo em línguas bantu, se acendo a vela no seu ponto e derramo sangue de cabrito ou galo nos seus ferros, ele revive em mim, torno-me quem ele foi, desperto quem eu mesmo sou e manifestamos no mundo - juntos! - o que significa nascer para os mortos. Saravá meu ancestral feiticeiro!

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